O DESPERTAR PARA A REALIDADE
Salvador – BA, março 1974
Cinco horas da manhã. A campainha do despertador brada ruidosamente, fazendo Floriano saltar da cama, num gesto quase automático, tateando a banqueta do quarto na tentativa de desligar o aparelho, a fim de não perturbar os colegas. Uma rápida esfregadela nos olhos sonolentos, e o vulto da banqueta, desprovida de qualquer objeto, se destaca na penumbra. Só então cai na realidade. Não há despertador. Apenas o subconsciente registrara a lembrança da noite anterior e fizera soar a campainha inexistente. Todas as noites, à hora de dormir, Floriano pensa em comprar um despertador, e se deita ruminando na mente o desejo até então insatisfeito de possuir aquele objeto de grande utilidade.
O momento, porém, não é propício para reflexões. O Tempo urge. O relógio de ponto do escritório nunca interrompe a sua marcha lenta. Num estirão de braços, tenta afastar a lassidão do corpo e dos músculos contraídos pelo fugaz descanso. Pega a escova e dirige-se às pressas para o banheiro. Não há água. Corre para o elevador, mas este não funciona. Apressa-se em descer as escadas, pois lá em baixo, no tanque de reserva, ainda devem restar algumas gotas de água com as quais poderá fazer o asseio matutino. Em poucos minutos, lá está ele sentando-se à mesa onde uma xícara de café e um pedaço de pão o aguardam. Feito o desjejum, empreende a caminhada até o ponto de ônibus. E volta o cansaço; e volta a lassidão do corpo.
Há alguns metros de distância já pode vislumbrar o aglomerado de pessoas. Apressa o passo e chega ofegante a tempo de infiltrar-se no meio da multidão de homens e mulheres que, ignorando as regras da etiqueta, atropelam-se num esforço desesperado a fim de conseguirem o ingresso no veículo. A situação é mesmo desesperadora. Se perder aquele ônibus, poderá perder também o emprego. E como estão difíceis, hoje em dia, os empregos!.. Finalmente, chega ao local de trabalho. Um atraso de cinco minutos é tolerável, desde que não se torne habitual. E começa o labor. Chegam papéis, saem papéis; Floriano sente-se quase sufocado em meio àquele amontoado de notas. Números e mais números, letras e mais letras, palavras e mais palavras. Nunca, porém, uma palavra de conforto, nunca uma palavra de incentivo, nunca uma palavra de estímulo, nunca uma palavra de compreensão. Somas incalculáveis passam por suas mãos diariamente, na expressividade daquelas notas. É a moeda, principal alavanca propulsora do progresso. É o dinheiro, que empanzina o “bucho” dos empresários, enquanto ele, Floriano, debate-se na esperança desesperada de conseguir um pouco mais para a sua subsistência.
Mas ele prossegue. Ele continua lutando. O progresso do Brasil depende também do seu esforço, da sua capacidade de trabalho, da sua dedicação e boa vontade. Lá fora, o jornaleiro passa apregoando as manchetes do dia: “Rússia invade o Afeganistão; Brasil contrai empréstimo de 200 milhões de dólares com os Estados Unidos; homem atropelado, morre na calçada; lavadeira faz treze pontos na Loteria Esportiva”. São manchetes as mais variadas e paradoxais. Floriano, todavia, parece indiferente a essas notícias. Tudo isto não passa de ocorrências vulgares no complexo mecanismo da vida. Por que se preocupar com o Afeganistão? Por que se impressionar com um pobre que morre na calçada? O importante mesmo, no momento, é trabalhar para adquirir um despertador. Já está farto de receber advertências por pequenos e insignificantes atrasos. E por falar em despertador, ei-lo que toca novamente. Floriano assusta-se. Prepara-se para saltar da cama, mas percebe que está atrás da sua carteira de trabalho. O ruído que ele julgara ser de um despertador, nada mais era além da campainha do escritório anunciando a hora do almoço.
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O PRÊMIO
Rio de Janeiro – RJ, outubro 1982
Bernardo não cabia em si de contente. Enquanto aguardava a luz verde do semáforo à sua frente, rememorava a última sexta-feira, exatamente no momento em que entrou em casa, ao retornar do trabalho. Marina, sua mulher, estava agitada e apressou-se em lhe dizer:
− Acabei de conferir o cartão da loto, Bernardo! – Exclamou ela entre soluços. – Você conseguiu, querido! Você acertou a quina. E correu para abraçá-lo.
− É verdade, marina? Balbuciou.
− É a pura verdade, querido. Estamos ricos! Ricos! Já ouvi pelo rádio que houve somente um ganhador. E sabe qual o prêmio desta semana? 952 milhões de cruzeiros.
Bernardo sentiu o sangue subir-lhe à cabeça. Começou a suar frio, como se acometido de uma febre de 39 graus.
Um carro buzinou atrás do seu fusca, trazendo-o de volta à realidade. O Sinal estava verde. Ele acelerou o veículo e dirigiu-se para a agência mais próxima da Caixa Econômica.
− Isso mesmo, senhor Bernardo – disse o gerente da caixa. O senhor é um milionário. Acertou sozinho na quina da loto. Agora mesmo, se desejar, pode depositar o cartão de apostas, por medida de segurança. Depois acertaremos os detalhes para aplicação do seu dinheiro.
− É exatamente o que vou fazer. Respondeu Bernardo.O gerente da agência encaminhou-o a uma funcionária que, solícita, apressou-se em preencher os formulários indispensáveis à abertura da conta.
− Nome completo, por favor.
− Bernardo Bernardino da Silva.
− Profissão.
− Bancário.
− Estado civil.
− Casado...
Terminada a burocracia, Bernardo agradeceu ao gerente e à funcionária pela atenção e despediu-se.
Mal atingira a calçada, foi assediado por um grupo de repórteres da televisão, das emissoras de rádio e dos jornais da cidade.
− Uma entrevista para “O Povo”, senhor Bernardo!
− Por favor, conte para os leitores da “Tribuna” como conseguiu acertar na quina!
− Aqui, Senhor Bernardo, diga quais os seus planos para o futuro.
Bernardo estava atônito. Não sabia o que dizer nem fazer.
Como conseguiram eles saber o meu nome? Quem lhes contou que acertei na loto? – Pensou por uns instantes. Não sabia que a sua mulher havia comentado o acontecimento com alguns vizinhos e a notícia já se espalhara pela cidade.
Os repórteres se atropelavam à sua frente, cada um tentando chegar o microfone mais próximo da sua boca.
− Calma, senhores − falou em tom meio desesperado. Deixem-me em paz. Nunca fui entrevistado, nem sei falar em público. Não tenho planos ainda. Desvencilhando-se dos repórteres, correu para o seu fusca 1975 e desapareceu no meio do trânsito.
Cinco meses depois de haver ganhado o prêmio da loto, o fato já esquecido pela imprensa, Bernardo traçava seus planos.
Uma cobertura, em um dos melhores bairros da cidade, substituíra o pequeno apartamento alugado, onde residia. Móveis modernos, de muito bom gosto, foram escolhidos por um decorador contratado especialmente por Bernardo para aquele fim. Na garagem, “Um D’el Rey” cinza escuro 1982 ocupava o lugar do fusca 1975. Marina, agora, só entrava na cozinha para orientar a empregada; e o filhinho de três anos, do casal, fora confiado a uma das melhores escolinhas para crianças dessa idade.
A vida de Bernardo transformara-se da noite para o dia.
E ali estava ele afundando-se até a cintura numa poltrona aveludada, a fazer planos para os próximos dias. Numa folha de papel, anotava todos os passos a serem dados para a realização dos seus sonhos: antes de tudo, uma viagem ao Nordeste para trazer seu irmão, que residia em uma cidadezinha do interior de Pernambuco. Este era o único parente vivo que ainda lhe restava. Pelo menos, era o único de quem ele tinha conhecimento. De longe em longe, trocavam correspondências.
Bernardo viera para o sul há mais de 20 anos. Lutou muito, sofreu mais ainda, “comeu o pão que o diabo amassou”, mas finalmente conseguiu o emprego no banco, onde trabalhou durante muito tempo, até aquele momento em que a sorte o bafejou. Seu irmão, embora mais velho, não teve a mesma sorte. Preferiu permanecer na cidade onde nascera. Mal aprendera a ler e a escrever. Profissão definida, não tinha. Fazia biscates e assim ia levando a vida em meio à mais extrema pobreza.
Aquela situação, porém, estava prestes a chegar ao fim. Bernardo conhecia bem o irmão. Sabia que ele tinha certas aptidões que não eram desenvolvidas por falta de oportunidade e campo de trabalho. Juntos poderiam administrar os seus bens, e então a felicidade se completaria.
Tudo correu exatamente como Bernardo planejara. Um mês depois, lá estava ele descendo do seu “D’el Rey” cinza escuro à porta do edifício onde residia, acompanhado por seu irmão, Altino Bernardino da Silva. Conduziu o veículo até a garagem e, de braços com o irmão e com Marina, dirigiu-se para a porta do edifício. Altino deslumbrou-se com a belíssima porta de vidro que se abria à sua frente. Pela primeira vez, seus pés calejados pisaram um luxuosíssimo tapete.
Bernardo sentia-se realmente feliz. Realizara sonhos que jamais pensara ver concretizados. E estava certo de que conseguiria, ainda, atingir outros objetivos mais ousados e que até alguns meses atrás lhe pareciam tão remotos e inatingíveis.
Do alto da sua cobertura contemplava a maravilhosa paisagem que se estendia à sua frente. O mar, com suas ondas de cristas esverdeadas e barulhentas a se quebrarem nos rochedos das ilhas mais próximas, parecia pequeno diante da felicidade que lhe inundava a alma naquele momento. Lá embaixo, na rua, os automóveis transitavam velozmente de um lado para outro, deixando escapar seus gases venenosos e poluentes. O disco vermelho do sol preparava-se para o seu mergulho vespertino nas águas douradas do oceano, muito além, no horizonte.
Perto da calçada, em frente ao seu edifício, uma mulher de roupas esfarrapadas com um filho aparentando dois anos escanchado na cintura e dois maiores segurando-lhe a saia, revolvia o depósito de lixo à procura de migalhas para minorar a fome dos seus rebentos.
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DEVANEIOS
Rio de Janeiro – RJ, Janeiro 1983
Hoje, resta-me apenas uma vaga lembrança da sua fisionomia, mas lembro-me perfeitamente da única vez em que a vi.
A noite estava quente, o céu sem nuvens. Não havia brisa e o asfalto da rua ainda irradiava o calor do sol que o fustigara durante todo o dia.
Ao dobrar uma esquina, deparei-me com ela. Assustou-se, a princípio, mas logo recuperou a calma ao notar, pela minha aparência, que não corria perigo. Eu também não esperava encontrá-la. Aliás, não esperava encontrar ninguém àquela hora. As ruas estavam desertas, embora não fosse muito tarde.
Paramos um em frente ao outro, indecisos. Tentei ir para a direita, ela também; volvi para o lado oposto e quase nos chocamos novamente. Paramos outra vez frente a frente, cada um esperando que o outro desse um passo ao lado e seguisse o seu caminho. Tal não aconteceu. Porque ela não deu o passo, jamais o saberei; porque não o fiz eu, estou plenamente consciente. Estava fascinado com tamanha beleza. Aquela mulher de olhos meigos, quase tristes, fitava-me serenamente. Parece que me hipnotizava com o seu olhar. O corpo esbelto, os cabelos negros derramando-se por sobre os ombros estreitos, os lábios delgados, a pele rosada e o perfume que exalava todo o seu ser, exerciam sobre mim um estranho fascínio, inebriando-me a ponto de não conseguir mover um dedo sequer. Jamais vira mulher tão bela. Seria mesmo uma mulher? Ou seria uma visão?
Descartei imediatamente a segunda hipótese, pois a ouvi falar. – Moço, pode informar-me onde fica a rua dos prazeres? – Perguntou. Por um momento pensei em responder-lhe que a rua dos prazeres era aquela mesma onde nos encontrávamos. Na verdade eu jamais sentira tanto prazer em outra rua. Que outra rua no mundo me proporcionara tal enlevo, tal arrebatamento? Não consegui, porém, responder nada. Não havia voz dentro de mim. O êxtase impediu-me de mover os lábios. Esforcei-me o máximo, mas não consegui sequer abrir a boca.
− Está bem, disse ela – e a sua voz, mais uma vez, soou melodiosa − não tem importância. Eu a procurarei sozinha. E, desviando-se de mim que ainda estava paralisado à sua frente, continuou a caminhada.
Ei! Espere! – Consegui balbuciar. Eu a ajudarei a encontrar a rua. Quebrara-se o encantamento. Voltei-me e corri na sua direção. Ela seguia vagarosamente, mas eu não conseguia alcançá-la. Corri até o fim da rua e ela se afastava cada vez mais. Cruzou outra rua e dobrou à direita, numa esquina. Apressei o passo e, ao chegar à esquina da rua onde ela havia entrado, nada mais encontrei além da escuridão da noite.
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ROFISSÃO: FÉ
Rio de Janeiro – RJ, junho 1985
“Abençoe-nos o Deus todo poderoso, Pai, Filho e Espírito Santo. Vamos em paz e o Senhor nos acompanhe”.
Terminara a missa. Frei Ângelo colocou a patena sobre o cálice, retirou a pedra d’ara que fora engastada no altar de madeira rústica antes de iniciar o santo sacrifício e dirigiu-se para a sacristia. Após despir-se dos paramentos, voltou a colocar a estola. Sua missão ainda não havia terminado. Lá fora, formando um semicírculo, os fiéis o aguardavam para a cerimônia do batizado. Naquele domingo, onze crianças iriam receber o sacramento do batismo. Iniciada a cerimônia, os pais e padrinhos respondiam em coro às perguntas feitas pelo sacerdote.
- Quereis ser batizados?
- Queremos!
- Credes em um só Deus, pai todo poderoso criador do céu e da terra?
- Cremos!
- Credes na Santa Igreja Católica Apostólica Romana?
- Cremos!
Frei Ângelo, dizendo em voz alta o nome de cada criança, pronunciava as palavras do batismo, enquanto derramava água benta sobre suas cabeças.
- Eu te batizo em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo.
***
A manhã estava linda. Os pneus da motocicleta trepidavam ao contato da rodagem de cascalho e atiravam pequenas pedras para todos os lados. Frei Ângelo segurava o guidom com firmeza, os olhos fitos na estrada, o pensamento distante. As hortênsias e azáleas e outras flores campestres margeavam a estrada e se estendiam pelos campos a perder de vista. Ao fim de cada curva, a paisagem se apresentava mais bela e esplendorosa. A certa distância, um rio deslizava suavemente pela planície. Os raios do sol caiam-lhe em diagonal sobre o dorso, refletindo um dos mais fulgurantes momentos da natureza.
Frei Ângelo parecia alheio a toda aquela beleza. Continuava absorto em seus pensamentos. Não conseguia compreender aquela força que o impelia de volta à sede da sua paróquia. Sentia-se feliz. Acabara de cumprir a sua obrigação. Levara a palavra do Senhor às ovelhas que se encontravam desgarradas do seu rebanho e estava convicto de que a fé na sua religião cada vez mais se cristalizava. Isto o deixava bastante satisfeito, pois ele escolhera o sacerdócio por vocação e amava o seu trabalho. Aquela vontade de retornar à matriz, porém, o intrigava. Nunca antes havia sentido aquela sensação. Todos os domingos ia celebrar missa nos povoados circunvizinhos situados na jurisdição da sua paróquia e lá ficava até à tarde. Almoçava na casa dos amigos e se preocupava apenas em chegar a tempo de celebrar a missa das sete da noite na matriz.
Naquele dia, embora fossem muitos os convites para o almoço, não conseguira ficar. Avançava a uma velocidade fora do normal. Não via a hora de chegar ao convento e preparar-se para a missa das sete.
***
Chegara, finalmente, o momento esperado com ansiedade. O coroinha abriu a cortina da porta da sacristia que dava para a nave da igreja, onde os fiéis aguardavam a entrada do sacerdote para a celebração do culto sagrado. A igreja estava repleta. Não havia um só lugar vago nos bancos e muitas pessoas se encontravam de pé. Todos gostavam de assistir às missas celebradas por Frei Ângelo, por causa da sua eloquência. Ouviam com atenção os seus conselhos e acreditavam piamente nas suas palavras. Frei Ângelo era jovem, mas a firmeza da sua voz, a sabedoria das suas palavras, a loquacidade dos seus discursos, poderiam conduzir à conversão até mesmo o mais empedernido dos ateus.
Num dos bancos da primeira fila, uma jovem aparentando vinte anos parecia aguardar, também com ansiedade, a entrada do sacerdote. Era de uma beleza invulgar. O rosto moreno contrastava com a brancura do véu que lhe ornava a cabeça. Os cabelos castanhos-escuros, não muito longos, desciam-lhe até a altura dos ombros. O nariz afilado e a boca pequena de lábios muito vermelhos, sem pintura, compunham um conjunto harmonioso, constituindo-se num prazer para os olhos.
Durante o sermão, Frei Ângelo quase não conseguia desviar seus olhos dos da jovem. Tentava dissimular virando-se para os lados, gesticulando, buscando com dificuldade no recôndito do cérebro as palavras, que em outras ocasiões fluíam naturalmente, mas que naquele momento pareciam fugir à sua percepção.
Desde o primeiro dia em que aquela jovem aparecera na primeira fila, que ele não conseguia pregar o sermão com desembaraço. Aquele olhar terno, aquela beleza ímpar no meio da multidão de fiéis pareciam exercer sobre ele uma força poderosa que o mantinha acorrentado por invisíveis grilhões, forçando-o a volver sempre o olhar para uma mesma direção. Sua fé, entretanto, era inabalável, de modo que conseguia, embora violentando-se terrivelmente, manter a calma e terminar as pregações sem que os fiéis notassem qualquer alteração no seu comportamento.
Finda a missa, já na sacristia, o coroinha ajudava-lhe a despir-se dos paramentos. A noite estava calma e uma brisa suave penetrava pelas frestas existentes na base da torre da igreja, refrescando o ambiente.
- Padre, soou uma voz atrás de si. - Preciso falar-lhe. Poderia conceder-me alguns minutos?
Frei Ângelo voltou-se bruscamente, pois o tom daquela voz, embora nunca ouvida antes, pareceu-lhe familiar. Deparou-se com a jovem da primeira fila, que o observava com um olhar de admiração e um lindo sorriso nos lábios.
- Pois não, minha filha - disse com voz segura, sem demonstrar nenhum embaraço, não obstante sentir-se abalado interiormente. Naquele momento ele percebeu o porquê da sua ansiedade, a razão daquela vontade de regressar mais cedo da cidadezinha onde fora celebrar a missa da manhã. Talvez o seu subconsciente já o tivesse denunciado, mas ele teimava em não acreditar que fosse aquele o motivo. Desde alguns dias atrás que ele vinha sentindo algo estranho a machucar-lhe o peito. Às vezes sentia-se como que esmagado entre duas paredes móveis que se fechavam e o comprimiam. A força da sua fé, no entanto, prevalecia, e ele conseguia desvencilhar-se daquele inimigo invisível através da oração. Exercia o sacerdócio há oito anos e durante essa árdua caminhada havia se deparado inúmeras vezes com as forças do demônio, que tentavam desviá-lo do caminho voluntariamente escolhido. Desta vez, porém, algo muito mais forte, mais forte talvez do que a sua própria vontade, parecia impedir qualquer reação da sua parte.
- Em que lhe posso ser útil? - Perguntou.
- Frei Ângelo - disse ela demonstrando certo embaraço. Necessito muito falar com o senhor em particular. Devo adiantar que não se trata de uma confissão; pelo menos, de uma confissão oficial. Todavia o assunto é muito importante e eu ficaria feliz se pudéssemos conversar ainda hoje.
- Está bem, minha filha - disse ele retirando a última peça da vestimenta utilizada para a celebração da missa. Aguarde-me, por favor, no salão paroquial, que irei atendê-la dentro de alguns instantes.
Cléia - esse era o nome da jovem - afastou-se em direção ao salão paroquial. Frei Ângelo ajoelhou-se diante do crucifixo que havia preso à parede da sacristia e orou: “Senhor, Vós nunca me abandonastes nos momentos difíceis e sabeis que eu tenho me esforçado para prosseguir na minha missão, esta missão que por amor a Vós escolhi. Desta vez, porém, sinto-me debilitado e temo sucumbir diante de tão poderosa força. Ajudai-me mais uma vez, Senhor, e fazei com que eu consiga expulsar de dentro de mim essa tentação que me invade a alma, para que eu possa continuar servindo-Vos até à morte conforme prometi a mim mesmo e a Vós quando da minha ordenação”.
Levantou-se. Estava mais confortado, mais confiante em si. Dirigiu-se para o salão paroquial. Cléia estava sentada em uma das cadeiras que circundavam a mesa de reuniões. Frei Ângelo sentou-se à sua frente.
- E então! Exclamou ele. Podemos conversar agora?
- Sim, padre - ela respondeu. Não estou muito segura de como começar, mas tentarei ir direta ao assunto para não lhe roubar muito tempo.
- Muito bem. Pode então começar.
- Padre, eu estou apaixonada! Exclamou a jovem quase ofegante.
- Isto é maravilhoso, minha filha! Significa tão somente que você é uma criatura normal. Na sua idade isto acontece com muita frequência. Então é este o motivo que a faz parecer tão aflita?
- Não é tão simples assim, padre. Acontece que estou apaixonada por um homem por quem não deveria me apaixonar.
- Por acaso é ele um homem casado?
- Não, padre, ele não é casado, mas também não pode se casar. Há algo que o impede.
- O que, por exemplo?
- A sua profissão.
- Não estou entendendo. A profissão de um homem não pode impedi-lo de se casar.
- Não mesmo? Que diz de um sacerdote da ordem dos franciscanos?
Frei Ângelo corou, embora estivesse acostumado a enfrentar situações embaraçosas. Na cidade ele era o único sacerdote. O convento e a paróquia eram pequenos e somente de vez em quando, em tempo de santa missão, o Bispado enviava mais um ou dois frades para ajudá-lo. Mas havia já algum tempo desde a última missão. Será que ela havia se apaixonado por um dos padres que já tinham regressado às suas cidades de origem? Arriscou, então, uma cartada, embora com um certo ceticismo quanto à veracidade do seu pensamento.
- Quer dizer que você se apaixonou por um dos padres que estiveram aqui na última santa missão?
- Padre, não acredito que o senhor seja tão ingênuo. De qualquer forma, creio que tomei coragem para esclarecer o assunto de uma vez por todas. Eu estou apaixonada por Frei Ângelo de Oliveira!
Frei Ângelo sentiu-se como se estivesse flutuando no espaço. Pressionou o chão com os pés, com toda a sua força, como a querer certificar-se de que estava realmente em terra firme. Com as mãos, apertou as bordas da mesa, sentindo a solidez das tábuas de que fora fabricado o móvel. Tudo isso ele o fez em uma fração de segundo.
Por alguns segundos, também, pensou em atirar-se nos braços daquela jovem a quem tanto amava em segredo, embora tentasse sempre enganar-se. Pensou em beijá-la com toda a paixão ardente que lhe inflamava o coração naquele momento. Lembrou-se, todavia, dos votos que fizera ao se ordenar sacerdote. Não poderia trair a sua religião. Aquela paixão, tinha certeza, era efêmera e com o passar do tempo haveria de desvanecer-se. A sua fé, porém, era perene, imorredoura, eterna.
- Minha filha - disse ele com voz acalentadora. Lamento muito que isto tenha acontecido. Sei perfeitamente que é um acontecimento normal, pois não somos donos dos nossos sentimentos. Não obstante, não devemos alimentar um sentimento que, de um momento para outro, se apodera do nosso coração, fazendo com que ele pulse aceleradamente, machucando-nos o peito. Sei quão difícil é suportar essas pulsações que nos sufocam e atormentam a alma. Todavia, para o nosso bem, devemos conformar-nos com a impossibilidade deste romance. Tenho certeza de que esta centelha de amor que por alguns momentos pareceu querer incendiar-nos o espírito será apagada pelo tempo. E então, veremos com alegria, que dela restou tão somente uma lembrança doce e amarga ao mesmo tempo, mas que já não nos causará nenhuma dor.
Cléia ouviu todas aquelas palavras com resignação. Aquela chaga invisível que lhe dilacerava o peito pareceu aprofundar-se ainda mais. Estava certa, no entanto, de que nada podia fazer. Pelo menos desabafara. A dor, por mais forte que fosse agora, não mais a incomodava tanto. A certeza de que ele também a amava e sofria com ela, ajudou-a a conformar-se. Levantou-se e saiu lentamente sem se despedir.
Frei Ângelo subiu para os seus aposentos.
Deitou-se e tentou conciliar o sono. Não conseguia dormir. Um suor frio corria por todo o seu corpo, encharcando-lhe as vestes. No seu interior, duas forças opostas se chocavam, causando-lhe tremores e calafrios. Estava a ponto de levantar-se e correr em busca da felicidade que se personificara naquela maravilhosa jovem.
Mais uma vez, porém, a sua fé triunfou. Levantou-se, tomou um banho frio e dirigiu-se para o interior da igreja, ajoelhando-se em frente ao altar.
Por algum tempo ficou ajoelhado silenciosamente, meditando nas coisas boas da sua religião. Erguendo a cabeça, olhou para o sacrário onde, momentos atrás, havia depositado a hóstia consagrada que, pelo poder da sua fé, transformara no corpo do filho de Deus. E orou mais uma vez: “Senhor, agradeço-Vos pela força que me concedestes, pela fé que me despertastes. Por alguns momentos senti-me enfraquecido, mas recorri a Vós e vi que, mais uma vez, não me deixastes ao desamparo. Sou feliz caminhando convosco, e convosco permanecerei até a morte”.
Enquanto Frei Ângelo fazia a sua oração, uma jovem solitária descia a rua em direção oposta à igreja. Levava sobre os ombros um véu branco, o qual ajudava a distinguir o seu vulto na penumbra da noite mal iluminada. Os passos lentos, o rosto inclinado. Na face, duas lágrimas rolavam silenciosas, como duas gotas de orvalho nas pétalas de uma rosa em plena manhã de primavera.
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Salvador – BA, agosto 1990
Naquele dia, a venda do Senhor Joaquim estava repleta de fregueses. Era um sábado à tarde; os trabalhadores das fazendas de cacau da vizinhança, após fazerem suas compras da semana, divertiam-se bebendo cachaça e contando casos para matar o tempo antes de retornarem a suas respectivas moradas.
Chico Bento estalou a língua de satisfação. Colocou o copo vazio sobre o balcão e voltou-se para o dono da venda.
— Eta pinga boa, seu Joaquim! Onde foi que o sinhô comprô essa cachaça?
— Foi o Maneca que trouxe lá das banda do Ouro, seu Chico. Eu também gostei muito dela e pedi mais dois barril. Deve está chegando prá semana.
— Pois óia, seu Joaquim, bota mais um copo aí que eu hoje tô mermo é prá bebê!
O senhor Joaquim olhou para Chico Bento com cara de espanto, enquanto enchia novamente o pequeno copo. Nunca o tinha visto beber daquele jeito.
Chico segurou o copo por alguns segundos, a mão trêmula, os olhos ainda lacrimejantes pelo efeito da última dose. Inclinou a cabeça para trás e, de uma tragada, ingeriu o líquido ardente, que deslizou garganta abaixo, queimando como uma torrente de lava.
— Que deu em você, home, essa já é a quarta cachaça que você bebe em menos de meia hora. Será que é a Rosa que tá mexendo com o seu juízo?
Chico Bento baixou a cabeça e nada respondeu. Seu peito parecia estar em chamas e não era por causa da cachaça. Havia outra razão para a sua angústia, porém ele preferia mantê-la em segredo.
O senhor Joaquim conhecia-o muito bem. Era um rapaz forte, de boa índole, honesto, trabalhador, dedicado ao seu patrão, o coronel Cerqueira, em cuja fazenda trabalhava há quase dez anos. Não era homem de se meter em confusão. Vivia sempre sorrindo e pilheriava com todos que o conheciam. Naquele dia, porém, o Chico estava diferente. O rosto sombrio, a testa enrugada, o olhar distante, tudo levava a crer que as coisas não iam muito bem para ele. Bebera como nunca o fizera antes. Será que ele e a Rosa tinham terminado o namoro? Havia já alguns dias que ele não aparecia com ela na sua venda. A venda do Senhor Joaquim ficava à margem da pedestre que fazia a ligação entre várias fazendas da região e a estrada principal de Ilhéus. Estava localizada nas terras de Juca Miranda, um pouco distante da fazenda do coronel Cerqueira.
A ausência da Rosa já estava sendo notada por todos os que frequentavam a venda. Era uma bela cabrocha, boa de se admirar. Olhos cor de mel, levemente repuxados, a boca quase sempre entreaberta num sorriso malicioso. Os cabelos negros, sedosos, bem cuidados, acariciavam-lhe os ombros morenos. O corpo bem feito, de busto pequeno e ancas largas, movimentava-se num bambolear provocante capaz de enlouquecer qualquer macho. Será que eles tinham terminado o namoro?
A curiosidade do senhor Joaquim, todavia, não seria satisfeita naquela tarde, pois Chico Bento despediu-se, montou na sua mula e desapareceu no meio do cacaual.
Uma nuvem pesada, cor de chumbo, começava a se formar lá para as bandas do Norte e dirigia-se lentamente na direção da fazenda do Coronel Cerqueira, impedindo que os raios do sol atingissem o solo. A mula de Chico Bento trotava pela vereda estreita, sob os cacaueiros e as árvores de grande porte que entremeavam as plantações de cacau e lhes serviam de sombreamento. Era por volta das quatro da tarde, mas já aparentava seis horas. A nuvem escura acentuara a sombra das árvores, antecipando o crepúsculo vespertino daquele dia. Chico Bento segurava as rédeas com mão firme, o pensamento voltado para a conversa que tivera com o seu patrão e com a Rosa alguns dias atrás, no alpendre da casa do coronel. A voz do Coronel Cerqueira ainda soava nitidamente aos seus ouvidos.
* * *
— Pois é como eu lhe disse, Francisco. Meu filho, Cerqueirinha, acabou de se formar em advogado na Bahia e está voltando para casa amanhã. Era minha vontade que ele ficasse aqui, cuidando da fazenda comigo, mas ele disse que prefere morar em Ilhéus, onde pretende montar seu escritório. Tem ainda outra coisa que eu quero que você fique sabendo. Da última vez que o Cerqueirinha esteve aqui de férias, confidenciou-me que estava gostando da Rosa e que planejava casar-se com ela quando terminasse os estudos. Eu lhe falei que ela não parecia interessar-se por ele.
— E o que foi que ele disse, coronel?
— Ele disse que tinha aprendido muita coisa na Bahia e que sabia como ensinar a Rosa a gostar dele.
— Mas coronel, o sinhô num falou prá ele que eu e a Rosa tamo de namoro e que a gente vai se casá?
— Disse, Francisco. Mas ele não levou a sério o namoro de vocês dois. Achou que ela estava só de passa tempo com você e quando ele voltasse com o diploma de doutor, ela certamente aceitaria o seu pedido de casamento.
— Isso num tá direito, coronel, o sinhô sabe que eu e a Rosa nos gostamo muito e vamo nos casá. Já falamo até com o seu vigaro lá de Água Preta e ele prometeu fazê o nosso casamento. Acho melhó o sinhô pedi a Cerqueirinha prá ele desisti da Rosa.
— Não sou a pessoa indicada para pedir isso ao Cerqueirinha, Francisco, porque eu mesmo estou de acordo com o casamento dele com a Rosa. Só permiti que vocês continuassem esse namoro, porque o considero um homem de bem e não pensei que o meu filho fosse levar a sério aquela conversa de que pretendia se casar com ela. Mas ontem mesmo, no telegrama em que ele avisou que chegaria amanhã, confirmou a sua intenção de se casar o mais breve possível e estabelecer-se em Ilhéus.
— O sinhô num pode fazê isso cumigo, patrão! Eu sempre fui um bom trabaiadô, sempre respeitei o sinhô e o Cerqueirinha. Por que o sinhô num fala cum ele prá procurá outra mulhé em Ilhéus? Lá tem tantas moça bunita, estudada, que é bem melhó prá ele do que a Rosa.
— Já está decidido, Francisco. Quando o compadre Firmino, pai da Rosa, se encontrava à beira da morte, pediu-me que não a deixasse desamparada. Ela foi criada junto com o Cerqueirinha, mas não como irmãos. Eu sempre fiz questão de deixar isso bem claro para eles. E o Cerqueirinha com certeza irá cuidar dela melhor do que você o faria. Não é verdade? Outra coisa, não notou que a Rosa tem evitado falar com você ultimamente? Eu conversei com ela a respeito da proposta do Cerqueirinha e ela está muito inclinada a aceitá-la. Falou que só ia encontrar-se com você novamente, quando tomasse coragem para lhe dizer a verdade.
À simples lembrança dessa última parte da conversa, Chico Bento sentiu o sangue ferver em suas veias. Porém, continuou com os seus pensamentos.
— Então, coronel, acho melhó o sinhô chamá a Rosa agora mermo prá gente resolvê de vez essa questão.
— Está bem, Francisco. Vou chamá-la e deixá-los a sós para que vocês se entendam. Mas vá com calma, rapaz! Não gostaria de perder a sua amizade nem o seu braço forte, que sempre esteve do meu lado na azáfama do dia a dia nesta fazenda.
O coronel despediu-se de Chico Bento e dirigiu-se para o interior da casa. Minutos depois, Rosa apareceu à porta. Mostrava-se um tanto abatida, mas continuava bonita como sempre. Chico não conseguia dissimular a tristeza. Olhou-a com olhos suplicantes, umedecidos pelas lágrimas que conseguira conter a muito custo. Não podia acreditar que fosse verdade o que o coronel Cerqueira acabara de lhe contar.
— Rosa — disse ele com voz entrecortada. — É verdade que ocê mudô de ideia sobre o nosso casamento?
— Olhe, Francisco, há algum tempo eu vinha sentindo que o nosso namoro não tinha mais o mesmo entusiasmo do começo. Os últimos dias em que estive ao seu lado já não foram tão agradáveis como aqueles que vivemos logo depois do nosso primeiro encontro. Tenho pensado muito ultimamente e estava tentando encontrar uma maneira de comunicar-lhe a minha decisão sem magoá-lo. Sinto, porém, que isso não é possível, pois o conheço muito bem e sei o quanto gosta de mim.
— Ocê também dizia que gostava muito de mim. A gente já tinha até falado com o vigaro de Água Preta prá fazê o nosso casamento. Será que se esqueceu dos nossos encontro na venda do seu Joaquim e daqueles momento que a gente ficava sozinho lá no roçado, perto da cachoeira e trocava as nossa jura de amô?
— Tem razão, Francisco! Naqueles momentos eu sentia que gostava muito de você. No entanto, sempre gostei também do Cerqueirinha e só agora descobri que estou realmente apaixonada por ele. Lamento profundamente que tenha acontecido desta maneira, mas acredito que você há de entender a minha situação e encontrar, ao lado de outra mulher, a felicidade que eu não seria capaz de lhe proporcionar.
Ao ouvir estas palavras, Chico certificou-se de que nada mais podia fazer para continuar o namoro com a Rosa. Realmente já havia notado certa frieza da parte dela quando se encontraram da última vez. Pensou ainda em apresentar outros argumentos que a fizessem mudar de ideia, mas o olhar sincero da moça fê-lo recuar no seu intento. Resolveu não dizer mais nada. Despediu-se dela e caminhou lentamente na direção da sua casa, que ficava a uns quinhentos metros da sede da fazenda.
* * *
A nuvem escura, que se formara minutos atrás e que agora pairava sobre a região, deixou-se romper nas suas entranhas e despejou sobre a mata uma chuva grossa acompanhada de fortes rajadas de vento, prenunciando a aproximação de um temporal. Os pingos da água fria fizeram Chico Bento voltar à realidade. Naquele momento ele se dirigia para a cidade de Ilhéus, onde às oito da noite seria realizado o enlace matrimonial de Rosa com Cerqueirinha. Chico ainda estava muito ressentido com o rompimento brusco do namoro, mas prometera ao coronel Cerqueira que iria assistir ao casamento. Afinal de contas, ele era considerado quase como um membro da família do fazendeiro. Felizmente estava próximo à casa do Juca Miranda e, ali, esperou a chuva passar para seguir viagem.
* * *
A igreja estava toda iluminada, enfeitada com muitas flores e repleta de convidados. O Coronel Cerqueira, embora vivesse a maior parte do tempo na fazenda, era muito conhecido em Ilhéus e fizera questão de convidar todos os seus amigos para a cerimônia do casamento e para a grande festa que daria no salão do melhor hotel da cidade, onde o casal passaria a noite de núpcias. Chico Bento não entrou na igreja, pois todos os assentos já haviam sido tomados. Além disso, suas roupas ainda estavam úmidas e ele preferiu permanecer de pé, em meio ao grupo de pessoas que se formara na porta principal, a fim de assistir à entrada dos noivos. Cerqueirinha já se encontrava diante do altar. Logo depois, Rosa descia do automóvel que a conduziu até à igreja, acompanhada do coronel Cerqueira. Ao se aproximar da porta, deparou-se com Chico Bento, cujo semblante não conseguia ocultar uma profunda tristeza. Os dois entreolharam-se por alguns segundos. Rosa fitou-o com tamanha ternura no olhar, que uma centelha de esperança reacendeu momentaneamente a chama, agora bruxuleante, mas que há alguns dias atrás ardia intensamente como a querer incendiar o coração de Chico. Ela parecia ansiosa para dizer-lhe alguma coisa. De repente, porém, desviou o olhar e afastou-se lentamente na direção do altar onde o seu noivo a esperava.
Terminada a cerimônia, após os cônjuges receberem os cumprimentos, todos se dirigiram para o local da recepção. Chico Bento juntou-se aos convidados e continuou a farra que iniciara à tarde na venda do senhor Joaquim, interrompida durante o trajeto para a cidade. A orquestra já começara a tocar e os casais rodopiavam no salão, compartilhando a alegria do jovem casal. Serviam-se comidas e bebidas finas, com uma fartura de causar inveja a qualquer magnata do petróleo. Os coronéis do cacau conheciam muito bem as dificuldades que enfrentavam para que o dinheiro chegasse às suas mãos. Não obstante, mostravam-se muito pródigos na hora de gastá-lo, desde que satisfizessem suas vaidades.
Os ponteiros dos relógios assinalavam onze e meia, quando os anfitriões despediram-se dos convidados e recolheram-se aos seus aposentos. Ao som estridente da orquestra misturava-se o barulho dos foguetes, que rasgavam o espaço e espocavam, e produziam clarões na escuridão do céu de chumbo. A festa continuou noite adentro, até altas horas.
Os primeiros albores da madrugada foram alcançar Chico Bento a mais de cinco léguas da cidade de Ilhéus. A mula, já bastante cansada, pois fora forçada a galopar grande parte da noite, seguia lentamente pela vereda estreita e cheia de lama. Aqui ou ali, detinha-se para comer um pouco do capim “sempre verde” que margeava a estrada. Chico Bento, segurando as rédeas sem se preocupar com a direção em que estava seguindo, cavalgou durante todo o dia. E quando o sol cedeu lugar à penumbra daquele triste entardecer, o seu vulto desapareceu numa curva do caminho.
Em Ilhéus, naquela mesma tarde, uma edição especial do “Diário da Cidade” estampava em sua primeira página: “Rosa e Cerqueirinha encontrados mortos no leito de núpcias”.
Chico Bento nunca saberia que o seu filho fora assassinado pelo próprio pai, antes mesmo de ter nascido.
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EM CADA AMANHECER, UMA ESPERANÇA
Salvador - BA, Agosto de 2002
De repente, você se encontra numa vasta planície coberta por uma relva florida e verdejante, entremeada por majestosas árvores esparsas e frondosas. Por entre as árvores, um córrego desliza tão suavemente, que mal se consegue notar o seu movimento. A certa distância, alguns animais selvagens pastam calmamente, enquanto outros saciam a sede no riacho. O silêncio tumular daquele ambiente, interrompido apenas pelo trinado e o adejar sutil dos pássaros nas ramagens e pelo tênue farfalhar das folhas ao contato da aragem, convida-o para um momento de repouso e reflexão.
Os raios dourados do astro rei surgem, tímidos, por traz das colinas, e em poucos instantes projetam-se sobre a planície, inundando-a com a sua luz fulgurante. Uma sensação de paz e tranquilidade invade a sua alma. Na solidão daquele ermo você se sente feliz e pensa: como seria bom se jamais acordasse! Você descobre que está sonhando, mas tem consciência de que no mundo real também existe um lugar como aquele, embora de acesso muito restrito. Ali a paz e a tranquilidade se abraçam e se confundem numa convivência harmoniosa. Ali não existem Osamas, nem Sharons, nem Arafats; ali não existem Bushes, nem Greenspans, nem Candessus; ali não existem Pedros, nem Antonios, nem Fernandos. Ali existe apenas a simplicidade dos pássaros, a beleza das árvores, a serenidade do regato, a irracionalidade dos animais, a plenitude da natureza. Como seria bom se jamais despertasse!
Mas você desperta assustado. Uma rajada de vento, lá fora, sacode as janelas do seu apartamento, anunciando a tormenta que se aproxima. O clarão dos relâmpagos devassa a escuridão do seu quarto, através da cortina entreaberta, e o ribombar dos trovões atinge seus ouvidos. Atordoado, você tenta recompor os pensamentos, mas não consegue. Agora é a dura realidade que se intromete pelos meandros do seu cérebro. Você acende a luz e olha o relógio. São três horas da madrugada. Suas vestes e lençóis estão encharcados do suor produzido pelo calor que normalmente antecede os temporais. A sensação agora é de puro desconforto. Você se levanta, toma um banho, troca as roupas encharcadas, deita-se novamente e tenta conciliar o sono. Mas você não dorme. Rola na cama de um lado para outro. Pensamentos confusos, insinuantes, desconexos, verdadeiros, reais e irreais alternam-se numa velocidade incrível, naqueles momentos de interminável insônia. Parece que todas as dúvidas do mundo se aglomeram na sua mente. Verdades incontestáveis são refutadas, planos em fase de execução descartados, fatos improváveis são aceitos como verdadeiros. Os pensamentos chocam-se uns contra os outros num inexplicável conflito de emoções. A existência da morte, essa execrável angústia do ser humano, fá-lo estremecer de pavor. Você não tem medo da morte, mas das diversas formas que ela assume. Na escuridão do quarto, parece enxergar o vulto sinistro daquela abominável criatura e chega até a sentir no ar o úmido bafio do seu tenebroso espectro. Entorpecido por aquela tétrica visão, você se deixa levar pelo desespero a ponto de acreditar que tudo está perdido, que a vida não possui nenhum significado. O sono, porém, este cavalheiro invisível e complacente, percebendo o ápice da sua torturante angústia, toca-lhe suavemente as pálpebras e faz soar aos seus ouvidos uma melodiosa canção de ninar.
***
Seus olhos abrem-se vagarosamente, ainda assustados com a visão da realidade vivida momentos antes. Agora, porém, tudo parece diferente. Em vez do clarão assustador dos relâmpagos, você sente a calidez dos raios do sol, que penetram através das vidraças da sua janela, pela nesga entreaberta da cortina; em vez do ribombar dos trovões, você ouve o gorjeio suave dos pássaros no jardim; em vez do vulto sinistro da morte, você se depara com a nitidez da sua própria imagem refletida no espelho do seu quarto. Você se levanta bem disposto, a despeito da noite angustiante de insônia. Abre totalmente a cortina e a janela e deixa entrar a brisa que emana do jardim, conduzindo no seu dorso invisível o suave aroma das flores. Olhando pela janela, você vê e pode até sentir o desabrochar constante da vida em cada planta, em cada pássaro, em cada criança que passa lá embaixo, na rua, em direção à escola. Seus pensamentos, agora, já não são mais conflitantes. Seu cérebro já pode ordená-los de maneira racional e objetiva. Você se recorda do sonho que antecedeu as horas de insônia da noite anterior e faz uma comparação entre os dois momentos: o do sonho e o presente. Nota que a diferença entre eles é quase imperceptível; que apesar dos Osamas, dos Sharons, dos Arafats, que apesar dos Pedros, dos Antonios, dos Fernandos, a vida é bela e pode ser vivida com intensidade em toda a sua plenitude. Basta ignorá-los. Aquele despertar, agora sossegado, sem rumores de tempestade, sem escuridão, sem torpor, sugere uma nova reflexão sobre a vida, afastando definitivamente os seus temores e conduzindo-o a uma nova realidade. Totalmente refeito daquela noite mal dormida, você reconhece que a vida tem realmente um sentido e que em cada amanhecer há sempre uma esperança que se renova.
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Viva o Brasil!
Salvador - BA, Julho de 2014
O teto de zinco do barraco de doze metros quadrados onde José morava com a mulher e os três filhos não resistira à chuva e ao vento forte que o fustigara durante toda a noite. As goteiras haviam formado poças de água no chão de terra batida e, por muita sorte, não atingiram os jiraus que serviam de cama para a família. Apesar da tempestade ocorrida na noite anterior, réstias de sol penetravam pelos furos do teto, anunciando o amanhecer de um lindo dia. José levantou-se, ainda sonolento, pois o barulho da chuva e a preocupação com o frágil barraco não o deixaram dormir com tranquilidade. Saiu para o terreiro e viu que o riacho que corria em frente ao barraco transbordara e espalhara muita lama e lixo ao longo das duas margens, além de carregar o tronco de madeira que servia de ponte para os moradores daquele lado da favela. Pelo menos a água não tinha invadido a sua casa - pensou ele, satisfeito.
Enquanto convocava os vizinhos, de barraco em barraco, para colocarem um novo tronco de madeira sobre o riacho, José assobiava o Hino Nacional. Ele era patriota até no nome, apesar de não ter estudo e não saber bem o que significava patriotismo. Mas era época de copa do mundo e o patriotismo aflorava à pele de quase todos os brasileiros. A Seleção Brasileira não vinha apresentando o futebol que os brasileiros esperavam, mas conseguira ultrapassar as fases eliminatórias e chegar à semi-final, para disputar com a Alemanha o direito de ir para a final com o vencedor do jogo entre Holanda e Argentina. José acreditava que o “caneco do hexa” ficaria no Brasil, sede da competição, e isto seria a felicidade total. A favela toda era um festival de verde-amarelo.
José não tinha nenhuma profissão. Ganhava a vida fazendo biscates, enquanto sua mulher trabalhava de empregada doméstica. O dinheiro que ganhavam dava para mitigar a fome dos cinco membros da família e ainda sobrava algum para a cervejinha nos fins de semana e nos dias de jogo do Brasil. O que mais ele queria? Tinha uma mulher, de quem gostava muito, e três filhos, cujas barrigas infladas pela verminose davam a impressão de que eles estavam bem alimentados; não eram como aquelas crianças do Nordeste, que comiam calango, como ele tinha visto há tempos atrás, na televisão do vizinho. Tinha cerveja, futebol e batucada. O que mais ele queria? Embora inconsciente era um vagabundo, mas não porque se aposentara antes dos cinquenta anos. Na verdade ele nunca se aposentaria. Primeiro, porque nunca tivera emprego fixo e não via nenhuma perspectiva de arranjar um, já que não possuía qualquer qualificação. Segundo, porque acreditava que não alcançaria os setenta anos para desfrutar daquele óbolo com que o Governo, na sua magnanimidade, favorecia aos que atingissem aquele patamar. Era um vagabundo compulsório, como milhões de outros brasileiros, mas estava feliz. O “hexa” era quase certo. O que mais ele queria?
Pelo pouco que ele sabia, seu país ia muito bem. Nos últimos onze anos houvera uma inflaçãozinha de pouco mais de 4% ao ano, mas isto não chegava a incomodar. Tudo estava sob controle. O Governo e os políticos iam muito bem, os banqueiros e os grandes empresários, estes, nem se fala!. O povo... Bem, o povo não importa. O que interessa agora é o “hexa”.
Naquela terça-feira, às cinco horas da tarde, o Brasil enfrentaria a Alemanha e, sem dúvida, conseguiria ir para a final. A Seleção Brasileira vinha melhorando a cada jogo e se encontrava no ponto ideal para conquistar a Copa do Mundo. Ele já arriscava até o escore: três a um para o Brasil.
Por volta das duas e meia da tarde, José saiu com alguns amigos em direção ao largo, onde a prefeitura havia instalado um telão para os moradores da favela assistirem aos jogos da Copa. Maria, que não gostava muito de futebol, ficou em casa com as crianças. O sol cedera lugar a uma chuva fina, renitente, e o dia, que iniciara tão brilhante, transformara-se num dia sombrio, quase sinistro. Seria um mau presságio?
Não havia motivo para superstições. José e os amigos caminhavam pelas ruas da favela, em meio à algazarra provocada pelos adultos e crianças, que a essa altura já os acompanhavam, com os corações transbordantes de otimismo e esperança.
***
Quatro horas da manhã. Maria acordou assustada com um barulho que parecia vir lá do riacho. Olhou para o lado e descobriu que José ainda não havia chegado. Não se preocupou, pois já se acostumara com os atrasos do marido. Sempre que havia jogos importantes de futebol, ele só chegava altas horas da madrugada. E aquela noite não fora diferente. Ela já tivera notícia de que o Brasil perdera por sete a um para a Alemanha. Por uma infelicidade, Neymar, o único jogador brasileiro capaz de conduzir o time à vitória, fora criminosamente atropelado por um jogador da Colômbia no jogo contra a seleção brasileira, nas quartas de final, e estava fora da Copa. O crime, que ficou impune como acontece com a maioria dos crimes cometidos no Brasil, provocou um clima de desolação nos demais componentes da equipe, conduzindo-a àquela inexplicável derrota.
José, quando não estava comemorando uma vitória do seu time, ficava lamentando-se e discutindo a derrota com os amigos até o amanhecer. E ela estava certa. Somente às nove da manhã, ele retornou ao barraco. Dessa vez, cometeu um exagero. Chegou um pouco embriagado, pois tomara muita cerveja enquanto torcia inutilmente pela vitória do Brasil. Entrou no barraco sem dizer uma palavra. Maria ainda perguntou se ele queria um café quente para curar a ressaca, mas ele nem chegou a responder. Atirou-se no jirau e adormeceu profundamente.
Em Brasília, naquele mesmo momento, os donos do poder retornavam também ressacados aos seus gabinetes, onde reiniciariam suas tramas e conchavos contra o povo brasileiro, sem perderem de vista a importante missão de preparar novos Josés, elementos fundamentais para a perpetuação das suas posições e a manutenção dos seus privilégios e mordomias.
Na favela, sentado à margem do riacho por não estar em condição de ficar de pé, um bêbado ainda reunia forças para gritar:
- Viva o Brasil, penta campeão mundial de futebol!...
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"Elementar, meu caro Watson!”
UMA HISTORINHA PARA CRIANÇAS, QUE MUITOS ADULTOS NÃO ENTENDERAM
Salvador (BA), fevereiro de 2010
Há muitos e muitos anos, existia um reino dotado de um potencial de riqueza extraordinário. Em suas terras podia-se encontrar uma grande variedade de minérios de inestimável valor, que, se bem aproveitados, poderiam trazer bem estar para toda a sua população. Mas as suas riquezas não se resumiam somente a minerais. A terra era também muito fértil e tinha capacidade para produzir alimentos de toda espécie, que podiam garantir uma vida saudável a todos os que nela habitavam.
O reino tinha uma população muito grande, mas a grande maioria dos seus habitantes passava fome, porque as terras estavam concentradas nas mãos do rei e de um pequeno grupo de pessoas egoístas que só produziam o suficiente para o seu próprio sustento e para vender a outros reinos o pouco que sobrava. A maior parte dos recursos oriundos da produção ficava com o rei, que cobrava impostos altíssimos tanto dos ricos como dos pobres.
E assim aquele reino permaneceu durante muito tempo: 60% dos seus habitantes vivendo na miséria enquanto 30% trabalhavam para manter os 10% restantes na opulência.
O reino, apesar de possuir grandes riquezas e ser administrado por um rei que havia frequentado as melhores escolas de administração e economia de outros reinos, afigurava-se como um dos mais pobres do planeta.
Os 30% que trabalhavam eram empregados dos 10% que ficavam com a produção. Estes pagavam salários irrisórios aos seus empregados, de modo a mantê-los sempre na mesma situação, não lhes permitindo melhorar a condição de vida.
Sabendo-se que 10% da população detinham 90% das riquezas produzidas, o descontentamento era geral. Ninguém estava feliz. O rei e seus ministros, gananciosos por mais impostos para esbanjar nas suas orgias, reclamavam que os recursos recebidos eram poucos e não dava para melhorar a condição de vida dos seus súditos; os 10% que detinham 90% das riquezas reclamavam porque pagavam impostos escorchantes e o rei não utilizava os recursos para lhes garantir segurança e todas as mordomias a que eles tinham direito. Reclamavam também porque não tinham compradores para os seus produtos. Por isso vendiam o excedente para outros reinos; os 30% que trabalhavam protestavam contra os baixos salários pagos pelos seus empregadores e pelo rei e cobravam melhores condições de saúde, de segurança, e melhor ensino nas escolas do reino; os 60% que viviam na miséria lamentavam-se por passarem fome, e reclamavam por não terem empregos que lhes garantissem pelo menos a mínima remuneração para se manterem vivos.
Certo dia, o rei morreu. Como ele era viúvo e não tivera filhos para sucedê-lo, os sábios da corte se reuniram e, após exaustiva consulta aos textos que regulamentavam a administração do reino, depararam-se com um artigo, dentre os vários que compunham o documento, o qual determinava:
“Artigo 2002 − No caso de falecimento de um rei que não possua herdeiros para substituí-lo, os sábios da corte deverão escolher dentre todos os súditos, aquele que lhes parecer possuidor das melhores condições para administrar o reino com justiça e sabedoria”.
Os sábios não tiveram nenhuma dúvida quanto à decisão a ser tomada. Como sábios que realmente eram, pensaram:
“Este reino existe há mais de 500 anos. Todos os reis que transitaram por este palácio pertenciam à “elite” − os que detinham os recursos da produção. Tinham frequentado as melhores escolas e possuíam grande conhecimento de Filosofia, Economia, Sociologia e outros “ias” mais. No entanto, aí estão os resultados do seu reinado: pobreza extrema da maioria dos seus súditos, corrupção generalizada, dívidas interna e externa fora de controle, total dependência do capital estrangeiro, descrédito do reino no cenário internacional, descontentamento de todas as classes, concentração das riquezas nas mãos de 10% da população”.
O reino encontrava-se sem dúvida alguma “no fundo do poço”.
De imediato, lhes veio à mente a figura do ferreiro do palácio. Todos o conheciam. Era um homem rude, mas de boa índole. Nascera de família humilde, pertencente à classe dos 60% de miseráveis que se debatiam na tentativa de se libertarem das amarras impostas pelo descaso dos imperadores.
Na condição de ferreiro do palácio, ele já havia migrado para a classe imediatamente superior. Pertencia agora ao grupo dos 30% que trabalhavam para sustentar o reino. Estudara pouco, mas fora dotado de uma inteligência que, embora não fosse rara, lhe permitia vislumbrar horizontes onde a maioria dos cérebros do reino só enxergava muralhas intransponíveis através das brumas da ignorância e da irresponsabilidade.
Não titubearam os sábios. Amparados pelo Artigo 2002 dos textos regulamentares decidiram conduzir o ferreiro ao trono.
Um dos sábios, entretanto, contrariando a decisão dos demais, argumentou que seria uma insensatez deixar o reino sob a responsabilidade do ferreiro, porque ele possuía apenas 19 dedos. Faltava-lhe um dedo em uma das mãos. Se todos os reis que o antecederam, possuindo todos os 20 dedos, não conseguiram encontrar o caminho da prosperidade para o seu reino e conseqüentemente para a maioria dos seus súditos, como um simples ferreiro, com apenas 19 dedos, poderia fazê-lo?
Prevaleceu, como não podia deixar de ser, a opinião da maioria. O ferreiro do palácio foi conduzido ao trono.
Imediatamente após a sua posse, os 19 dedos do ferreiro começaram a raciocinar. Sim, o ferreiro não precisou utilizar o cérebro para resolver os principais problemas do reino. Seus dedos, embora em inferioridade numérica, conseguiam pensar melhor do que os cérebros dos reis que o antecederam. Ademais, os problemas a serem resolvidos de imediato eram tão elementares, que não valia a pena desperdiçar o tempo do cérebro para resolvê-los.
Uma das primeiras e principais medidas adotadas pelos dedos do novo rei causou protestos e descontentamento entre os “entendidos” da corte: uma parte dos impostos arrecadados foi distribuída, de maneira racional e controlada, com a maioria dos súditos que viviam abaixo da linha de pobreza, permitindo-lhes assim, em caráter emergencial, adquirir alimentos para a sua subsistência. Essa medida não abalou nem um milímetro os alicerces do tesouro do reino. O volume da arrecadação era tão gigantesco que o novo rei, a exemplo dos seus antecessores, continuou com as orgias e o esbanjamento.
A visão irracional, egoística e gananciosa dos “entendidos” da corte, todavia, não conseguiu enxergar a excelência dessa medida, nem tampouco os benefícios futuros de curto prazo que dela poderiam advir. E os resultados não tardaram a se evidenciar: os excluídos, agora beneficiados pela “generosidade” do novo rei, correram ao mercado para adquirir alimentos e outros bens que satisfizessem as suas necessidades mais prementes, reprimidas ao longo de vários anos.
Essa atitude, como era de se esperar, forçou os mercados a solicitarem cada vez mais mercadorias aos fabricantes e produtores de bens, que por sua vez passaram a contratar mais mão-de-obra, qualificada ou não, para atender à crescente demanda. Registre-se que os fabricantes e produtores operavam com capacidade ociosa, graças ao descaso e ao desinteresse dos reis anteriores pelo bem estar dos seus súditos.
Promoveu-se, assim, o fenômeno do desenvolvimento, palavra há muito esquecida ou até mesmo desconhecida pelos “entendidos” da corte e o “espetáculo do crescimento,” como bem definiu o novo rei, pôde ser assistido de camarote por ele e pelos demais habitantes do reino.
Com o passar do tempo, muitos dos excluídos que foram “obsequiados” com a primeira medida adotada pelo novo rei, migraram da classe dos 60% para a dos 30%, outros da classe dos 30% para a dos 10% alterando, assim, a relação. A população do reino passou a ser composta de 20% de miseráveis vivendo abaixo da linha de pobreza, 65% de pessoas empregadas que trabalhavam para manter agora não mais 10% e sim 15% na opulência. A medida, portanto, beneficiou 40% da população do reino, sem causar qualquer prejuízo às demais classes. Aliás, todas as classes, direta ou indiretamente, foram beneficiadas. O simples ato de consumir daqueles que não o faziam durante longos anos, desencadeou o ciclo virtuoso da economia do reino, proporcionando uma vida digna a grande parte da população e gerando mais riqueza para os gananciosos.
Várias outras medidas que exigiam raciocínio com o cérebro e não com os dedos foram adotadas pelo novo rei, visando a solucionar problemas bem mais complexos do que o do exemplo acima.
Como conseqüência dessas medidas, o reino tornou-se conhecido e respeitado pelos demais reinos da terra, mesmo encontrando-se ainda muito distante da situação desejável, almejada pela maioria dos seus súditos.
Os sábios da corte comemoraram, enquanto os “entendidos” roíam-se por dentro de inveja, por não terem sido agraciados com o dom maior do ser humano depois da vida − a inteligência.
A população agradeceu pelo pouco que foi realizado, mas continuou na esperança de que os sucessores do novo rei, que certamente possuiriam todos os dedos, não tentassem raciocinar com eles. Pois raciocinar com os dedos, principalmente quando se tem um a menos, é tarefa assaz difícil e arriscada e somente deve ser executada por alguém que possua um cérebro realmente privilegiado.
Autor: Gérson de Araújo Matos
Um brasileiro insigne(ficante)