CONSUMOU-SE O GOLPE
No dia 19 de outubro de 2014, há exatamente 683 dias, escrevi o artigo intitulado GOLPE À VISTA, que pode ser relido na página “Atualidades” do meu site www.germatos.com.br. Naquela oportunidade recebi inúmeras críticas de colegas, amigos e conhecidos, algumas muito duras, outras mais ponderadas; todas, porém, discordando do meu modo de analisar aquele momento político. Na opinião deles, o Brasil jamais sofreria outro golpe de estado, pois a democracia encontrava-se plenamente consolidada. Confesso que eu também acreditava, não com a convicção plena, que a democracia no Brasil já havia atingido maturidade suficiente para sobreviver por um período mais prolongado. Hoje, entretanto, acabamos de constatar a triste realidade do meu prognóstico. Consumou-se o golpe. Não há como contestar.
Por que o "impeachment" e o “julgamento” da Presidente Dilma pelo Senado Federal foram notoriamente considerados um golpe e uma farsa? Primeiro, porque “impeachment” sem base legal é golpe; e segundo, porque no “julgamento” os membros daquela casa legislativa exerceram ao mesmo tempo o papel de jurados, promotores e juízes que serão beneficiados com a deposição da presidente. Foram exatamente seis dias de absoluta perda de tempo com a encenação desse teatro de marionetes remuneradas.
Solicitada pela defesa a anulação do processo por não possuir este base jurídica legal para a sua abertura, o próprio presidente do STF já declarara que aquela Corte não é considerada instância recorrível neste caso, por tratar-se de um processo de caráter político. Não vemos, portanto, razão para esse julgamento ser coordenado por um membro do judiciário (embora esteja previsto na Lei 1.079, de 10 de abril de 1950 que julgamentos dessa natureza sejam coordenados pelo presidente do STF), tendo em vista que a sentença, de conformidade com a própria Constituição brasileira, deverá ser prolatada pelos senadores, os quais são ao mesmo tempo promotores, advogados, jurados e juízes. Ou seja, a prática desse procedimento fatalmente redundará em absolvição ou condenação do acusado não pela justiça, mas tão só e unicamente pela diferença de número existente entre os membros da acusação e os da defesa.
Conclui-se, destarte, que, no entender do legislador, o julgamento político é mais importante do que o julgamento jurídico, no caso dos crimes de responsabilidade, quando ele consigna no Artigo 86 da Constituição que ao cometer esses crimes o presidente da república será julgado pelo Senado Federal e não pelo Judiciário. Nesse caso, se a maioria se constituir de acusadores, o réu será condenado; se a maioria se constituir de defensores, o réu será absolvido; o crime, a culpabilidade ou a inocência do réu não têm a menor relevância. E a justiça? Por onde andará essa moça de olhos vendados em momentos como esses? Estranhas, ininteligíveis e inconcebíveis essas leis brasileiras.
Assim, não há como compreender o papel do Presidente do STF na coordenação desse embuste, uma vez que o veredicto foi dado pelos próprios acusadores, pelo menos um ano e dez meses antes da realização desse acontecimento nefasto que envergonhou o nosso país. E, como já era fato notório, o veredito seria culpado independentemente da comprovação da inocência ou da culpabilidade da ré, justamente pelo fato de que os senadores favoráveis ao golpe apresentavam-se em número bastante superior ao número dos contrários à interrupção do Estado Democrático de Direito.
O único aspecto positivo desse espetáculo grotesco é que, como foi transmitido pela televisão, um grande número de cidadãos brasileiros, assim como o resto do mundo, puderam assistir e tomar conhecimento de que primeiro condenaram a ré e lhe imputaram a pena, e somente depois foram inventar um crime para a ela ser atribuído. Ou seja, o golpe é indiscutível. Os argumentos do advogado e os depoimentos das testemunhas da defesa são incontestáveis, porém desprovidos de qualquer valor porque o veredicto já fora determinado por antecipação ao julgamento.
Os atos supostamente praticados pela presidente, classificados como crimes de responsabilidade pelos seus algozes e diretamente interessados no seu afastamento na tentativa de legitimarem o golpe e, por consequência, livrarem-se da operação policial “Lava Jato”, foram comprovadamente praticados por governos anteriores sob a égide da mesma Constituição Federal de 1988 e não se configuraram crime de responsabilidade (único requisito constitucional capaz de determinar o “impeachment”), por se tratarem de simples atos administrativos que não ferem frontalmente a Constituição e as Leis de Responsabilidade Fiscal e Orçamentária. O próprio vice-presidente conspirador, hoje transformado presidente em razão dessa vergonhosa ruptura democrática, que provocou o inconstitucional afastamento da legítima mandatária, eleita democraticamente por mais de 54 milhões de brasileiros, já vinha utilizando durante a sua interinidade como presidente os mesmos instrumentos considerados ilegais pelos articuladores e promotores do golpe, conforme ficou comprovado no decorrer da encenação dessa farsa.
Dilacerou-se a Constituição da República Federativa do Brasil promulgada em 05 de outubro de 1988, ao condenar-se sem o devido respaldo daquele documento, uma presidente que, comprovadamente, não cometeu nenhum crime e vemos assim o despontar de um perigoso precedente para que se possa impor o impedimento de qualquer chefe dos poderes executivos da República ao arrepio da lei maior do país, simplesmente pelo fato de os seus opositores não concordarem com a maneira como se vestem esses mandatários ou por outra futilidade qualquer. Para que isto ocorra, basta que os opositores sejam maioria no Congresso Nacional, nas Assembleias Legislativas e nas Câmaras de Vereadores. Indubitavelmente, nosso Brasil não é um país sério.
Salvador - BA, 31 de agosto de 2016, o dia da vergonha nacional.